sábado, 21 de maio de 2011

'O Dia'



Das profundezas da tarde vem o dia em que se vive eternamente
igual à água múrmura entre os rochedos
onde se ocultam na antemanhã os peixes perseguidos pelos
homens.

Não se percebe o outro dia melodioso lá fora
nas perspectivas dos arranha-céus, nos cinemas e no trânsito.
A hora tem uma espessura de segredo guardado
e as gargantas de onde as sedes emigraram
suplicam apenas o que sobrou do frio e do sono.

As imprecações dormem no ar, com uma resistência de anjos,
e as doçuras se desfiguram numa ilusão de joelhos fendidos
n'água

como se os corpos sentissem que o tempo foi embora.
A vida, liberta dos vocabulários eventuais, festeja-se sem
memória

no espírito acorrentado a um infinito agora
eternamente presente como o oceano nas praias.


Lêdo Ivo
(Cântico, 1949.)

'Imagen casi perdida'



Eres como la luz alta y delgada.
Como el viento eres clara sin saberlo.
Vacila tu actitud como la tarde
suavemente inclinada sobre el mundo.

Eres hecha de sueños olvidados
y te olvido de pronto, como a un sueño;
mi corazón te busca como el humo
busca la altura y hacia ella muere.

Como una tibia flor te lleva el día
prendida entre sus labios. Eres alta,
azul, delgada, y recta como un silbo.
Te recuerdo de pronto como a un sueño.


Eduardo Carranza

´Felicidade"




Ela veio bater à minha porta
e falou-me a sorrir, subindo a escada:
“Bom dia, árvore velha e desfolhada”
e eu respondi: “Bom dia, folha morta”

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então chamou-me e disse:“Vou-me embora!
Sou a felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz”

E foi assim que em plena primavera,
só quando ela partiu contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!


Guilherme de Almeida
in 'Sonetos'

'CREPÚSCULO'


Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
E de doçura triste, inexprimivelmente.

À surdina da luz irrompe, de repente,
O coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança
Entre nuvens de opala, a concha do crescente.

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
Da recôndita paz das horas esquecidas,
Vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando ...

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
Melancolicamente, o coração pulsando,
Plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.


Martins Fontes
Verão (1917)

'CANTIGA DE RODA'


(Severino Ramos- ‘Brincadeira de roda’- 1963)

Ao som de ingênua cantiga,
Gira, ligeira, uma roda.

Bailam cabelos de linho,
Brilha a cantiga nos olhos,
Saltam, leves, os pezinhos.

Os grandes cedros antigos,
Também, se põem a bailar:
Cantam os ramos no ar,
Dançam as sombras no chão.


Helena Kolody
(12/10/1914 , 14/02/2004)
in 'Sinfonia da vida".

O MAR E O CAIS



Oh! ressaca dos dias bravos
O mar a investir contra o cais
E as ondas rebentando no alto!
As espumas, a desfolharem-se,
Caem como pétalas brancas ...
Na sua fúria forte, as águas
Deslocam pedras da amaruda.
Venceu o mar! Perdeu o cais!

Oh! ressaca dos dias bravos em nosso peito ...

Ribeiro Couto
in Melhores Poemas

"Flores Noturnas'




Na eterna paz das noites silenciosas
E por onde estrelas glaciais florescem,
Pelas excelsas aras luminosas
Dos céus azuis, brancas neblinas descem.

Cristalinas hosanas langorosas
Na boca dos arcanjos desfalecem.
E num concerto de harpas misteriosas
Lótus de amor pela amplidão fenecem.

Todo o paul da terra se perfuma
E desabrocha no éter e na bruma
A gestação das flores imortais.

E, do mar das angústias e das ânsias,
As nossas almas bóiam nas distâncias
Das remotas paragens siderais.


Gonçalo Jácome
(1875-1943)
in “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”

«DOCES FIGURAS DO PARQUE»


(Sibelius Monument)(Helsinki-Finlândia)


Doces figuras do parque,
De velho mármore enegrecido,
Vazio o olhar e o nariz partido,
E sempre à chuva e ao sol... doces figuras do parque!


Que éreis então? No dístico, se havia,
Que lia outrora, se antes do embarque
Para Citera, a vós o olhar rendia,
À beira lago, a loira Infanta? Que seria,
Doces figuras do parque?


Pois este braço, sem antebraço,
Se bem que as roupas já não abarque,
Um gesto lânguido de cansaço
Guarda, e parece que o manto escasso
- Doce figura do parque! -
Serenamente cai do ombro lasso...


Nada, neste jardim,
Que o tempo, enfim, de suas mãos não marque.
Vós éreis assim
Já antes, e sereis depois de mim...
Doces figuras do parque!


Cabral do Nascimento
(in «Descaminho», 1969)
(1897-1978)

'NEVE'




Hei de sentir uma ternura grave,
Qualquer cousa de pausa na descida,
Quando te surpreender compondo, suave,
A bela cabeleira embranquecida.

Talvez o outono seja a grande chave
Perfeita e luminosa desta vida,
Em que, mãos postas, murmuramos — Ave,
Ventura, colho-te amadurecida! —

Há, no outono, um sabor de cachos de uvas
Que provamos, tranqüilos, só de vê-los
Rebrilhantes, lavados pelas chuvas.

Deve ser muito doce e manso, ainda,
Sorridente, ao tocar os teus cabelos,
Dizer-te: Como a neve te faz linda!

Francisco de Oliveira e Silva
(Recife-1897)

'A Coruja Branca'



Em minha casa entre as árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os astros crepitantes
As montanhas descem em direção ao mar como rebanhos
que não tivessem esperado a licença da aurora para
a migração necessária.
E a erva cresce. E a água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam no caminho danificado pelas chuvas de janeiro.
Um pio atravessa a folhagem murmurante.
A coruja branca, minha irmã sedentária,
vigia na escuridão o mundo abandonado
por tantas pálpebras fechadas.


Lêdo Ivo

'QUADRAS'




Graça é folha. – A graça veste
De brilho a beleza. Assim,
A folha, na balsa agreste,
Destaca a flor do jasmim.

Beleza é flor. – Que ambrosia
O seu cálice contém!
A folha cai, todavia,
A flor se inclina, porém.

Bondade é fruto. – A semente,
Pela mão do semeador,
Desce ao sulco: e, viridente,
Frondeja e floresce o amor.

Heitor Lima

'O corvo'




[...]
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora

Não sai mais, nunca, nunca mais!


Edgar Allan Poe (excerto)
Tradução de Machado de Assis

'Sou o que serei'


(Emíle Vernon)


Às vezes me abandono inteiramente a saudades
[estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua –
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então

Sou o que fui.
E sou o que serei.


Augusto Frederico Schmidt

'NOITE DE SAUDADE'




A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

Florbela Espanca
in A mensageira das violetas.

...



"Estou sentado à beira-mar, olhando o mar sem o ver.
Voa no meu pensamento, a dança e contradança de lembrar e esquecer.
Não sei se vou esquecer.
E enquanto sei e não sei;
Estou sentado à beira-mar, olhando o mar sem o ver.
Na tal dança, contradança de pensar e não pensar, pressinto que vou sentir lágrimas no meu olhar.
E enquanto sinto e não sinto, atiro pedras ao mar.”


Milan Kundera

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Entre a minha casa...


"Entre a minha casa e a tua há uma ponte de estrelas,
uma ponte de silêncios."

Mário Quintana

O poema é o dedo do poeta



O poema é o dedo do poeta
apontando para o vôo do pássaro
que está além das suas palavras.


Rubem Alves

AMAPOLAS



a inevitabilidade da crença deve conduzir ao rasgar da fé.
nada é perfeito, nada fica incólume após o toque humano.
e sente-se a raiz do choro,
cujo advento faz a proclamação do trilho terreno,
que alimenta a condição mortal.

nos momentos em que os halos vermelhos se erguem
para a redenção,
existência acontece pelo verter das lágrimas
que sucumbem às echarpes em luz solar.

talvez a ilusão seja uma necessidade?
mas, apenas o sonho é seguido,
apenas o sonho propícia a expiação.

ser ou dever ser,
é a constante do diálogo.

que produz as cores do horizonte.

Vicente Ferreira da Silva

De noite, amada, amarra teu coração ao meu



De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.

Com as asas de um cisne submergido,
para que as perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

O LADRÃO DE VERSOS


Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingênuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Rui Knopfli — Mangas Verdes com Sal
“in” Antologia Poética – Poetas de Moçambique

O ÁUGURE




Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
- passado presente futuro -
roda refletindo mil sóis

Sou essa colméia de incêndios
essa assembléia de sinais
esse rumor insone


Rio, 26/5/80


Helio Pellegrino
in Minérios Domados

A Imagem Perdida



Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca... uma taça quebrada...)
eu só tenho um valor estimativo.

Nos olhos que me querem é que eu vivo
esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
refletirá meu vulto vago e esquivo...

E cerraram-se os olhos das amadas,
o meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...

E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
muitas vezes, parei... e, nos espelhos,
procuro em vão minha perdida imagem!


Mario Quintana

"TUAS CARTAS"



Tuas cartas rasguei uma por uma:
Cento e quatorze páginas e tiras
De confissão e juramento: em suma,
De perfídias, de enganos, de mentiras.

E chorei, ao rasgá-las! Tinha alguma
Cousa implorando contra as minhas iras
Em todas; e, hoje, irritação nenhuma
Neste peito verás, por mais que o firas.

Eram mentiras, eu bem sei... No entanto,
Cada rompida página era um cardo
Que enterrava do peito em cada canto.

E eis porque, pelo chão, após instantes,
Os pedaços juntei... e agora os guardo
Com mais amor do que os guardava dantes!


-HUMBERTO DE CAMPOS-
In (‘Poesias Completas’ (1933))

Dia



De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.

Octavio Paz

Inutilmente



Floriram os ipês ali da praça
e, quando a gente passa,
-porque o vento as derruba em profusão –
vai esmagando flores pelo chão.

Como ciclópica oficina
pulsa, ao redor, a vida citadina.
Arranha-céus fugindo para o alto
numa arquitetura funcional;
automóveis rodando sobre o asfalto
e, de fundas angústias carregada,
a multidão correndo, alucinada,
vazia de Ideal.

Babélica, apressada,
toda essa gente não repara em nada:
não vê, em cima, a loira floração,
nem vê que pisa em flores pelo chão.

Os ipês se enfloraram, mas em vão . . .
Sua mensagem clara, colorida,
-um hino de louvor ao Belo e à Vida –
fica rolando, inútil, pelo chão,
fica, inútil, rolando pelo ar,
pois os homens não sabem mais sonhar.


Graciette Salmon
In: A Vida Por Dentro

*A foto que ilustra o poema é da "Praça da Liberdade" - Belo Horizonte-MG

sexta-feira, 6 de maio de 2011

E por vezes...


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Lábios que não se abrem, lábios


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado



Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.



Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.



Fria espada unida
ao corpo.



Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.



Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.


Henriqueta Lisboa
Publicado: A Face Lívida (1945)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

MAR ALTO


Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.

Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.

Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo — nada.

Hélio Pellegrino