quinta-feira, 21 de abril de 2011

"POEMA BREVE"


Inda percorro os dias
e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna,
In "Algures no Tempo"

MOTIVO


Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.

Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.

O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.

Glória de Sant'Anna

5



por trás da alta falésia
o mar chora-me nos pés

(último afago sereno
a quem se afasta morrendo)


Glória de Sant'Anna
in Amaranto

QUADRO




tanto oiro na tarde
escorrendo do poente

as silhuetas das árvores
são fímbrias de poemas

e quantos horizontes
me esqueceram?

Glória de Sant'Anna
in Algures no Tempo
EPITÁFIO

Eu um dia serei uma poalha de vento
pousando inadvertidamente em tua face

e me sacudirás

Eu um dia serei uma réstea de chuva
caída por acaso em tua fronte

e me sacudirás

E eu um dia serei a última lembrança
imponderável já na tua mente

e então me esquecerás


Glória de Sant'Anna

'Vibra o Passado em Tudo o que Palpita'


Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transita

À paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:

O cetro dos eleitos que não cansam
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançam

sobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo.


Walter Benjamin,
in "Sonetos"
Tradução de Vasco Graça Moura

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vicente de Carvalho (excerto)


[...]Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...

É o tempo em que adormeces
Ao sol que abrasa: a cólera espumante,
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As largas ondas marulhando estendes...
[...]


Vicente de Carvalho
Excerto do poema 'Palavras ao Mar'

Noturno


Laça-me o coração a curva de teus olhos,
Um giro de dança e doçura,
Berço noturno e firme, auréola do tempo,
E se já não sei mais o que foi minha vida
É que teus olhos não me viram no passado.

Folhas de luz, musgo de orvalho,
Ervas do vento, risos perfumados,
Asas cobrindo o mundo de clarões,
Barcos cheios do céu e do oceano,
Caçadores dos sons, manancial das cores,

Perfume que nasceu em ninho de alvoradas,
E que escondido está na palha das estrelas,
Como da inocência depende a luz
Depende o mundo de teus olhos puros
E em seu olhar corre meu sangue.


Paul Éluard

NOTURNO


No silêncio da noite vou formando
teu retrato, no silêncio da noite
modelando teus olhos, teus cabelos
entre os lençóis de sono que me envolvem.

Na meia claridade, maldesperto,
angustiado, insone, construindo
a arquitetura móvel de teus lábios
levanto-me, e estás sempre comigo.

Durante o dia e a qualquer momento
estamos lado a lado, vou compondo
a tua imagem (vento sombra nuvem),
lembrança amiga no trabalho duro.

E surges na agonia do crepúsculo
- e és a aurora inaugurando a noite.


Fernando Py
in 70 Poemas Escolhidos

Nocturno


Dentro dos finos dedos das árvores quietas
a noite dorme um longo sono transparente

junto das tépidas aves de olhos ausentes
da clara madrugada que ainda não surgiu.

O esparso e denso azul silêncio ressente-se
e simula agitar-se a uma brisa ténue que não existe,

(e contornaria os muros pálidos e inertes
sem tocar o secreto e desconhecido íntimo das pedras).

Tudo se contém no contorno fixo do seu limite.

Só o mar se desdobra e reflecte inquietamente
a vigília inútil e cansada das estrelas.


Glória de Sant'Anna
Portugal 1925-2009

terça-feira, 19 de abril de 2011

NUVENS AO VENTO



No céu de um azul profundo
as nuvens baixas, brancas, esgarçadas,
ameaçam como patas de dragão.
Giram, circunvolvem, assustam
como se fossem antigravuras de Dürer,
a Morte, mas a Morte branca, de algodão e sonho.

As nuvens giram, fiapos iluminados de sol,
em pleno topo do céu.
Arquipélagos convulsos, luminosos.

O vento agita o salgueiro e o liquidâmbar.
No jardim as estátuas se oferecem nuas,
nuas de um branco terreno, sem a luz das nuvens.

Nada mais belo existe,
e a vida é um dom azul, um dom azul e branco.
Neste momento somos deuses,
deuses que temos por limite
a nossa própria pele e o azul do céu.

O tempo arredondou-se azul:
parou no azul do céu
girando como nuvem
cujo movimento fosse a pausa.
Enquanto dura a pausa, somos imortais. Imóvel
é o presente, e nele nos cravamos.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

ÁGUA



Pudéssemos fazer-nos água, a de formas
incalculáveis, múltiplas, inconcebíveis:
macho decapitado, aranha
de infinitas teias, rosto amorfo,
água-mãe, filha e mãe nuvens.

Como ser o que és, sem ser mutável,
água,
água fêmea, púbis de virgem,
água de sexo transparente, puro seio?

Água, água de um milhão de formas,
pudéssemos humildemente
ser um só de teus espelhos,
deixando o orgulho humano
para as nuvens com a quais se ilude
enquanto sopra o vento, o vento pouco,
amargo, sem piedade.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

QUINZE HORAS



Descai o sol, risonho,
empunhando tições em chamas.

No relógio
o ponteiro, enérgico,
estende-se – braço
apontando o horizonte:
mostrará algum prodígio,
algum desastre, algum demônio?

O verde escorre das árvores,
a sombra quase queima.

No céu o sol maneja o seu tridente
atiçador de chamas,
ruivo demônio:
e vibra a luz,
e os pássaros se calam,
e no campo azul,
tal como Joana d’Arc no seu poste
arde o demônio alegremente.


Péricles Eugênio da Silva Ramos
in A Noite da Memória

O homem e sua sombra



O homem e sua sombra.
Era um homem com sombra de cachorro,
que sonhava ter sombra de cavalo,
mas era um homem com sombra de cachorro.
E isto, de algum modo me incomodava.
Por isto, aprisionou-se num canil.
E altas horas da noite,
enquanto a sombra lhe agrava,
sua alma em pêlo galopava.

Affonso Romano de Sant´Anna

O QUE TU ÉS...



És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve Primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...

Florbela Espanca
«Livro de Soror Saudade»

segunda-feira, 18 de abril de 2011

AOS EMUDECIDOS



Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.


Georg Trakl
(tradução: Cláudia Cavalcante)

DE PROFUNDIS



Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom; ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.


GEORG TRAKL
(tradução: Cláudia Cavalcante)

Se uma rosa infinita



Se uma rosa infinita me rebentasse no peito
e, ao entardecer, florescesse nos meus lábios,
deixarias que fosse removendo as sombras
- porque vives nas sombras - com minhas mão sedentas,
com cavalos de insónia galopando na minha testa
a pô-la devagar nos teus ombros nocturnos?

Se um ramo de fogo brotasse na minha língua
deixarias que fosse como um vento na noite
- essa noite que tens na tua voz e em tua casa -
a dizer-te palavras nas tuas costas desnudas?

Antonio Gamoneda
[trad: cas]

VESPERAL



Hora de benção, de perdão, de prece...
E que, no entanto, é das que mais afligem...
Entardecer... O azul empalidece
como um rosto na agônica vertigem ...

Em breve a noite vai colher a messe
das estrelas ... E da cerúlea origem
a alma do vago sobre as almas desce
e as saudades para elas se dirigem ...

Morreu da luz o fulgurante império ...
O poente, como as ilusões perdidas,
os nossos sonhos vãos, se fez cinéreo ...

E sobre tantas ruínas, quando enoite,
virão chorar, nas horas esquecidas,
as cristalinas lágrimas da noite ...


José Lannes
inCandeia – l.948.

19



Os seres amados são sombras que se apagam,
são sombras de um jardim, no entardecer.

Nós tínhamos no olhar o encantamento
dos lúcidos recortes,
dos arabescos harmoniosos
desenhados no chão.

Mas um por um diluiram-se os desenhos
numa sombra maior ...

Os seres amados são sombras,
são sombras de um jardim, no entardecer ...


Tasso da Silveira
in Poemas

A VIGÍLIA DO SILÊNCIO



Apraz-me ouvir, às horas vespertinas,
Quando o ocaso desmaia o azul sidéreo,
O longo cantochão das casuarinas
Na religiosa paz do cemitério.

As árvores, em múrmuras surdinas,
De um rumor elegíaco e funéreo,
Falam de coisas mortas e divinas,
Veladas pelas sombras do mistério.

A perscrutar as vozes do arvoredo,
Na ânsia inquietante e céptica do sábio,
Tento, ó Morte! saber o teu segredo.

Mas vejo, no alvo mármore das urnas,
O Silêncio com o dedo sobre o lábio,
Olhando as vagas solidões noturnas...

Da Costa e Silva

TRÊS APONTAMENTOS NOTURNOS



I

Eis-me aqui crucificado novamente nesta janela escura
que se dissolve
ao som de uma canção qualquer
entre as mil janelas claras de tantos edifícios.
É noite, eu sempre soube que era noite
mas nunca soube tanto como agora.

II

Absorto, dentro da noite eu pensava a própria noite.

Fiz-me coisa, coisa me fizeram; aceitei-me sem saber
onde encontrar o porquê de mim no vasto maquinário.

Perdi-me. Entre sapos e estrelas me perdi
e fui-me escurecendo aos poucos, como um bicho que apodrece.

Se levei a vida para o glabro rendez-vous dos metafísicos,
engordurei-a de espasmos sem parentes; e a fiz tão só
como um cacto no deserto em que só os ratos passeiam
ou como esse luar que naufragou no olhar do louco.

Absorto, dentro da noite eu pensava a própria noite.


III

Morres, todas as vezes
em que o mundo é simplificado como a lâmina de uma faca
que não cortou laranja ou boi, mas continuou terrivelmente faca
nas dobras de um casaco ou pensamento.

1959

Moacyr Félix

NOTURNO



Quero dormir
o sono sem mitos, um sono longo como o da pedra
que não sonha à beira do caminho

Quero a forma das chamas congeladas
ou das sombras mudas
em que a Noite morre como um bicho escuro
sob o Olhar dos doidos
Não quero mais as grades
nem a luz sem sangue desta cidade!

Quero marijuana, ópio, cocaína
o despertar sem tempo,
mas tão sem tempo como aquela rua que termina num ponto
feito para a minha poesia dançar
vitoriosamente a morte de Deus.


1948

Moacyr Félix

NOTURNO...



No silêncio da noite, em que a treva parece
um bálsamo de amor, de paz, de esquecimento,
mal se consegue ouvir o dorido lamento
do mar, que diz baixinho a sua eterna prece.

Passa tão devagar a carícia do vento
que nem mesmo o arvoredo, ao de leve, estremece.
Das estrelas a luz, meio apagada desce...
Desce dos amplos céus um torpor sonolento.

Um barquinho que vai cruzando ao longe, acesa
a lanterna, que a vaga, ora mostra, ora esconde,
parece um vagalume.E uma imensa tristeza.

vem dessa pobre luz, por cuja incerta sorte
só o capricho feroz do mar é que responde,
e que luta,cruel, para a apagar, a Morte.


Medeiros e Albuquerque
In Fim (1922)

NOTURNO



A rua mora e sem lua
que andamos em noite antiga
perpetuamente perdura,
não sai mais de nossa vida.

Vamos longe, no destino,
de alma trêmula e insegura:
de repente, descobrimos
que ainda estamos nessa rua,

que a sua solidão pura
densa, longa, lenta, vaga,
ainda, triste, se insinua
no fundo de nossa mágoa,

que no vário, estranho, imenso
mundo de nossa ternura,
a sombra do seu silêncio
como um farrapo flutua.


Tasso da Silveira
Canções a Curitiba
& outros poemas

NOTURNO



Veleiro ao cais amarrado
em vago balouço, dorme?
Não dorme. Sonha, acordado,
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

Se acaso me objetardes
que veleiro não é gente
e, assim, não sonha nem sente,
sem orgulhos nem alardes
eu direi: por que haveria
de falar-vos do homem triste
mas de olhar grave e profundo
que, à amargura acorrentado
sonha, no entanto, que vive
toda a beleza do mundo?

Melhor é dizer: Veleiro...
veleiro ao cais amarrado,
sob as límpidas estrelas.
Vela branca é uma alma trêmula,
sobretudo se cai sombra
do alto abismo constelado.
Veleiro, sim, que não dorme
mas na silente penumbra
sonha, ao balouço, acordado
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.


Tasso da Silveira
In Tasso da Silveira - Poemas
Organização e seleção de Ildásio Tavares
ABL/Edições GRD, São Paulo, 2003

NOTURNO


Estava a sonhar contigo,
Mas acordo de repente...
Ouço bater ao postigo
Lentamente...longamente...
Penso que és tu, morta ausente,
Que voltas ao teu abrigo.

Corro, impaciente, à janela.
Olho a noite. Ermo profundo...
O vento frio e iracundo
As árvores arrepela...

E eu pergunto às sombras: — E Ela?
Não voltará mais ao mundo?

O chão de folhas se junca
Ao vento que as solta e leva...
E ouço, em silêncio, na treva:
— Quem morre não vem mais nunca.

O CORVO de Poe se ceva,
Cravando-me a garra adunca.

— Ai! que saudade! — Maldigo
A vida, triste e descrente:
— Se eu dormisse eternamente...
E volto a sonhar contigo.

Bate o vento no postigo...
Cai a chuva lentamente...


Da Costa e Silva