segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Verdade


Pelo aniversário da escritora e poeta, Laura Riding, (16 de janeiro 1.901)

VERDADE

Sempre procuramos a Verdade.
Ela tem medo de ser pega.
Livros são gaiolas.
Verdade não é um canário
Para ciscar palavras com paciência
E morrer depois de comer todas.

A verdade não gostaria de viver
Na cabeça ou na garganta ou no coração de alguém.
Não tente acha-la ali.

A verdade não é dríade pra ser punida numa arvore
A verdade não é nenhuma naiade.
A verdade certamente se afogaria numa fonte.

Deixe a terra em paz.
A verdade não deixa pegadas.
Não escute
Até o silencio se pôr com a lua.
A verdade não faz ruídos.
Não siga a luz
Que segue o sol
Que segue a noite.
A verdade dança além da luz
E do sol
E da noite.
A verdade não pode ser vista.

Deixe a curiosidade ficar em casa.
Ela pode se perder.
(A verdade freqüenta antros estranhos.)
Se, criança, o segredo se calça,
Um dia será imprudência.

Deixe a verdade em paz.
A verdade não pode ser pega.
Acho que ela não vive nada, não,
Pois teria medo de morrer, então.


Laura Rinding
In: Mindscapes
Seleção e Tradução: Rodrigo Garcia.

*********

Laura Reichental nasce em Nova York em 16 de janeiro de 1901.

Seu pai, imigrante judeu polonês, era alfaiate e um socialista engajado.
A mãe, Sadie, era filha de imigrantes judeus.
No Brooklyn, Laura tem infância pobre e instável, sendo educada pelos rigorosos princípios políticos de Nathaniel.

Entre a política e a poesia, aos 15 anos Laura opta pela última, para reprovação do pai. Mais tarde, consegue uma bolsa de estudos e ingressa na prestigiada Universidade de Cornell, se concentrando em línguas e literatura. Logo abandona a vida universitária para se tornar poeta e pensadora independente.
Em 1923 casa-se com o professor de história Louis Gottschalk.
Laura Riding Gottschalk (o nome do meio sendo invenção sua), muda-se para Louisville e passa a publicar poemas em revistas literárias pequenas como Contemporary Vérse e Poetry.

1924 é um ano importante: ganha um prêmio da revista The Fugitive, sendo saudada como "a maior revelação da poesia norte-americana" pelo grupo de poetas-críticos (fortemente influenciados por Eliot) que formaria a infantaria da Nova Crítica.lo Por terem projetos de vida diferentes, Laura e Louis se divorciam. "Os fugitivos" também sentem dificuldade com a personalidade forte de Riding e as relações esfriam.

Laura parte para Nova York, onde tem um breve período boêmio, tornando-se amiga íntima de Hart Crane e conhecendo figuras como e.e. cummings,
Malcolm Cowley e Edmund Wilson.

Na conservadora Inglaterra, Riding teve de se impor por seus próprios méritos. Ela não se encaixava nos pré-requisitos do "clube". A recepção a seu trabalho, no entanto, quase sempre é hostil (ser uma mulher inteligente, de descendência judaica, norte-americana e poeta, nos tensos e anti-semitas anos 30, não contribuía muito para sua aceitação na cena literária).

Como Jed Rasula escreveu: "Numa atmosfera poética controlada pela presença e os pronunciamentos augustos de T.S. Eliot, o primeiro trabalho certamente surgiu como uma afronta à recém-proclamada dignidade que a poesia havia alcançado. Ela surgiu, como Atena, armada até os dentes" (''A renaissance", 167).

Tudo parecia correr bem até que um evento trágico mudaria a vida da chamada "Trindade". Em 1929, durante uma discussão em que estavam presentes Nancy, Graves, e um "discípulo" de Laura (Geoffrey Phibbs), Riding se atira da janela do quarto andar do apartamento londrino (Graves a segue, se atirando do terceiro andar). Laura sobrevive da queda, passando por várias cirurgias e uma temporada no hospital. O acontecimento repercute, pois Graves é uma figura literária conhecida. Em busca de sossego e de uma vida mais barata, tão logo Riding se recupera os dois partem para a França e depois para Majorca, onde vivem seis anos de intensa atividade intelectual. Na ilha espanhola Riding recebe visitas esporádicas de amigos e admiradores, retoma a editora artesanal, sempre envolvida em projetos coletivos (como a revista Epilogue). A vida paradisíaca e utópica na ilha é interrompida pela explosão da Guerra Civil espanhola, em 1936, que os obriga a abandonar a Espanha em poucas horas. De volta a Londres, organiza e publica sua principal obra, Collected poems (1938), reunindo 181 poemas selecionados de seus nove livros anteriores.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Recordação


E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.

Rainer Maria Rilke,
in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Impressões


I


Setenta vezes sete vezes
o céu mudou de tom
nas impermanências do dia.

Mas e então?

Melhor, para além da retina,
ser a cor.
Talvez assim alguma diferença faça
que num ponto A do universo
uma supernova exploda
na mais gritante, inconsequente
alquimia.


Fernando Campanella, 1989



II



...bebo a luz, traço a alma,
eu sou o impressionista itinerante

então nem me perguntes
por quais geografias me espalho

meus olhos são câmeras mimadas,
meus pincéis, artífices do instante.



( Fernando Campanella, trecho do poema 'Impressionista', 2007)


(Tela de Claude Monet )

CANÇÃO DO EXÍLIO


Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota
In Planície dos Mortos

quarta-feira, 13 de julho de 2011

ENTRE BELOS MATIZES . . .


Desejo,
anseio,
tocar na policromia dos horizontes,
aquém, lá. . .

e,
ao pintar-me dessas fontes
inebriar-me de belezas,
dançando com a alegria e a tristeza. . .

Roubar o indecifrável. . . dessas presenças.

E aos infinitos,
enciumados,
abandonados. . .
emprestar-lhes
meus presentes beijos.

Desejo,
anseio,
morrer entre cores
sob o olhar ardente dos infinitos,
sem que o amanhecer
discorde. . . exuberancias
com o entardecer!

Alvina Nunes Tzovenos
In: Buscas de Infinitos

INCONSTÂNCIA DOS BENS DO MUNDO


Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Matos

Velho Tema - I -


Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver; mais nada.
Nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida.
é uma hora feliz sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa, que sonhamos
toda arreada de dourados pomos.

existe, sim, mas nós não a alcançamos.
porque está apenas onde nós a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos.

Vicente de Carvalho
- São Paulo (1866-1924)

MAL SECRETO

Se a cólera que espuma, a dor que mora
nalma, e destrói cada ilusão que nasce,
tudo o que punge, tudo o que devora
o coração, no rosto se estampasse;

se se pudesse o espírito que chora
ver através da máscara da face,
-quanta gente, talvez, que inveja agora
nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
guarda um atroz, recôndito inimigo,
como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe.
cuja ventura única consiste
em parecer aos outros venturosa!

Raimundo Correia

AS POMBAS

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
de pombas vão-se dos pombais, apenas
raia, sanguínea e fresca, a madrugada...

E, à tarde, quando a rígida nortada
sopra, aos pombais, de novo, elas, serenas,
ruflando as asas, sacudindo as penas,
voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações, onde abotoam.
os sonhos, um por um, céleres voam,
como voam as pombas dos pombais;

no azul da adolescência as asas soltam,
fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
e eles aos corações não voltam mais!.

Raimundo Correia
- Maranhão (1860-1911)

Desiludido

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fechou um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!

Alceu Wamosy
(Uruguaiana, 1895, Santana do Livramento,1923- RS)

Saudade


Saudade . . .
Melodia perdida
no espaço . . .
Nostalgia
envolvente
na solidão
do quarto . . .
Diálogo
com o tempo
que já foi . . .
Saudade . . .
Tela do cinema
da vida . . .

Delores Pires
In: A Estrela e a Busca

terça-feira, 7 de junho de 2011

AQUILO QUE NÃO SOMOS

Ninguém tem culpa
Daquilo que não fomos!
Não houve erros,
Nem cálculos falhados
Sobre a estepe de papel.
Apenas,
Não somos os calculistas
Porém os calculados,
Não somos os desenhistas
Mas os desenhados,
E muito menos escrevemos versos
E sim somos escritos.
Ninguém é culpado de nada
Neste estranhar constante.

Ao longe, uma chuva fina
Molha aquilo que não fomos.

Paulo Bomfim

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sobrevivo


Ausências em mim
diferem, me assustam,
pela crueza do mundo
que pulsa lá fora

Sobrevivo sem estar
em lugar nenhum,
construindo artifícios íntimos,
na dor silenciosa onde a vida grita
pra continuar

Minha incredulidade
chega num arremesso
contra a qual não sei lutar,
fazendo da caminhada
uma oração calada,
uma metáfora apagada

Conceição Bentes
Publicado no Recanto das Letras em 25/10/10
Código do Texto: T2577973

sábado, 21 de maio de 2011

'O Dia'



Das profundezas da tarde vem o dia em que se vive eternamente
igual à água múrmura entre os rochedos
onde se ocultam na antemanhã os peixes perseguidos pelos
homens.

Não se percebe o outro dia melodioso lá fora
nas perspectivas dos arranha-céus, nos cinemas e no trânsito.
A hora tem uma espessura de segredo guardado
e as gargantas de onde as sedes emigraram
suplicam apenas o que sobrou do frio e do sono.

As imprecações dormem no ar, com uma resistência de anjos,
e as doçuras se desfiguram numa ilusão de joelhos fendidos
n'água

como se os corpos sentissem que o tempo foi embora.
A vida, liberta dos vocabulários eventuais, festeja-se sem
memória

no espírito acorrentado a um infinito agora
eternamente presente como o oceano nas praias.


Lêdo Ivo
(Cântico, 1949.)

'Imagen casi perdida'



Eres como la luz alta y delgada.
Como el viento eres clara sin saberlo.
Vacila tu actitud como la tarde
suavemente inclinada sobre el mundo.

Eres hecha de sueños olvidados
y te olvido de pronto, como a un sueño;
mi corazón te busca como el humo
busca la altura y hacia ella muere.

Como una tibia flor te lleva el día
prendida entre sus labios. Eres alta,
azul, delgada, y recta como un silbo.
Te recuerdo de pronto como a un sueño.


Eduardo Carranza

´Felicidade"




Ela veio bater à minha porta
e falou-me a sorrir, subindo a escada:
“Bom dia, árvore velha e desfolhada”
e eu respondi: “Bom dia, folha morta”

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então chamou-me e disse:“Vou-me embora!
Sou a felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz”

E foi assim que em plena primavera,
só quando ela partiu contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!


Guilherme de Almeida
in 'Sonetos'

'CREPÚSCULO'


Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um langor de mística esperança
E de doçura triste, inexprimivelmente.

À surdina da luz irrompe, de repente,
O coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança
Entre nuvens de opala, a concha do crescente.

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
Da recôndita paz das horas esquecidas,
Vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando ...

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
Melancolicamente, o coração pulsando,
Plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.


Martins Fontes
Verão (1917)

'CANTIGA DE RODA'


(Severino Ramos- ‘Brincadeira de roda’- 1963)

Ao som de ingênua cantiga,
Gira, ligeira, uma roda.

Bailam cabelos de linho,
Brilha a cantiga nos olhos,
Saltam, leves, os pezinhos.

Os grandes cedros antigos,
Também, se põem a bailar:
Cantam os ramos no ar,
Dançam as sombras no chão.


Helena Kolody
(12/10/1914 , 14/02/2004)
in 'Sinfonia da vida".

O MAR E O CAIS



Oh! ressaca dos dias bravos
O mar a investir contra o cais
E as ondas rebentando no alto!
As espumas, a desfolharem-se,
Caem como pétalas brancas ...
Na sua fúria forte, as águas
Deslocam pedras da amaruda.
Venceu o mar! Perdeu o cais!

Oh! ressaca dos dias bravos em nosso peito ...

Ribeiro Couto
in Melhores Poemas

"Flores Noturnas'




Na eterna paz das noites silenciosas
E por onde estrelas glaciais florescem,
Pelas excelsas aras luminosas
Dos céus azuis, brancas neblinas descem.

Cristalinas hosanas langorosas
Na boca dos arcanjos desfalecem.
E num concerto de harpas misteriosas
Lótus de amor pela amplidão fenecem.

Todo o paul da terra se perfuma
E desabrocha no éter e na bruma
A gestação das flores imortais.

E, do mar das angústias e das ânsias,
As nossas almas bóiam nas distâncias
Das remotas paragens siderais.


Gonçalo Jácome
(1875-1943)
in “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”

«DOCES FIGURAS DO PARQUE»


(Sibelius Monument)(Helsinki-Finlândia)


Doces figuras do parque,
De velho mármore enegrecido,
Vazio o olhar e o nariz partido,
E sempre à chuva e ao sol... doces figuras do parque!


Que éreis então? No dístico, se havia,
Que lia outrora, se antes do embarque
Para Citera, a vós o olhar rendia,
À beira lago, a loira Infanta? Que seria,
Doces figuras do parque?


Pois este braço, sem antebraço,
Se bem que as roupas já não abarque,
Um gesto lânguido de cansaço
Guarda, e parece que o manto escasso
- Doce figura do parque! -
Serenamente cai do ombro lasso...


Nada, neste jardim,
Que o tempo, enfim, de suas mãos não marque.
Vós éreis assim
Já antes, e sereis depois de mim...
Doces figuras do parque!


Cabral do Nascimento
(in «Descaminho», 1969)
(1897-1978)

'NEVE'




Hei de sentir uma ternura grave,
Qualquer cousa de pausa na descida,
Quando te surpreender compondo, suave,
A bela cabeleira embranquecida.

Talvez o outono seja a grande chave
Perfeita e luminosa desta vida,
Em que, mãos postas, murmuramos — Ave,
Ventura, colho-te amadurecida! —

Há, no outono, um sabor de cachos de uvas
Que provamos, tranqüilos, só de vê-los
Rebrilhantes, lavados pelas chuvas.

Deve ser muito doce e manso, ainda,
Sorridente, ao tocar os teus cabelos,
Dizer-te: Como a neve te faz linda!

Francisco de Oliveira e Silva
(Recife-1897)

'A Coruja Branca'



Em minha casa entre as árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os astros crepitantes
As montanhas descem em direção ao mar como rebanhos
que não tivessem esperado a licença da aurora para
a migração necessária.
E a erva cresce. E a água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam no caminho danificado pelas chuvas de janeiro.
Um pio atravessa a folhagem murmurante.
A coruja branca, minha irmã sedentária,
vigia na escuridão o mundo abandonado
por tantas pálpebras fechadas.


Lêdo Ivo

'QUADRAS'




Graça é folha. – A graça veste
De brilho a beleza. Assim,
A folha, na balsa agreste,
Destaca a flor do jasmim.

Beleza é flor. – Que ambrosia
O seu cálice contém!
A folha cai, todavia,
A flor se inclina, porém.

Bondade é fruto. – A semente,
Pela mão do semeador,
Desce ao sulco: e, viridente,
Frondeja e floresce o amor.

Heitor Lima

'O corvo'




[...]
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora

Não sai mais, nunca, nunca mais!


Edgar Allan Poe (excerto)
Tradução de Machado de Assis

'Sou o que serei'


(Emíle Vernon)


Às vezes me abandono inteiramente a saudades
[estranhas
E viajo por terras incríveis, incríveis.
Outras vezes porém qualquer coisa à-toa –
O uivo de um cão na noite morta,
O apito de um trem cortando o silêncio,
Uma paisagem matinal,
Uma canção qualquer surpreendida na rua –
Qualquer coisa acorda em mim coisas perdidas no tempo
E há no meu ser uma unidade tão perfeita
Que perco a noção da hora presente, e então

Sou o que fui.
E sou o que serei.


Augusto Frederico Schmidt

'NOITE DE SAUDADE'




A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

Florbela Espanca
in A mensageira das violetas.

...



"Estou sentado à beira-mar, olhando o mar sem o ver.
Voa no meu pensamento, a dança e contradança de lembrar e esquecer.
Não sei se vou esquecer.
E enquanto sei e não sei;
Estou sentado à beira-mar, olhando o mar sem o ver.
Na tal dança, contradança de pensar e não pensar, pressinto que vou sentir lágrimas no meu olhar.
E enquanto sinto e não sinto, atiro pedras ao mar.”


Milan Kundera

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Entre a minha casa...


"Entre a minha casa e a tua há uma ponte de estrelas,
uma ponte de silêncios."

Mário Quintana

O poema é o dedo do poeta



O poema é o dedo do poeta
apontando para o vôo do pássaro
que está além das suas palavras.


Rubem Alves

AMAPOLAS



a inevitabilidade da crença deve conduzir ao rasgar da fé.
nada é perfeito, nada fica incólume após o toque humano.
e sente-se a raiz do choro,
cujo advento faz a proclamação do trilho terreno,
que alimenta a condição mortal.

nos momentos em que os halos vermelhos se erguem
para a redenção,
existência acontece pelo verter das lágrimas
que sucumbem às echarpes em luz solar.

talvez a ilusão seja uma necessidade?
mas, apenas o sonho é seguido,
apenas o sonho propícia a expiação.

ser ou dever ser,
é a constante do diálogo.

que produz as cores do horizonte.

Vicente Ferreira da Silva

De noite, amada, amarra teu coração ao meu



De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.

Com as asas de um cisne submergido,
para que as perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

Pablo Neruda

O LADRÃO DE VERSOS


Uma gargalhada de meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingênuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Rui Knopfli — Mangas Verdes com Sal
“in” Antologia Poética – Poetas de Moçambique

O ÁUGURE




Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
- passado presente futuro -
roda refletindo mil sóis

Sou essa colméia de incêndios
essa assembléia de sinais
esse rumor insone


Rio, 26/5/80


Helio Pellegrino
in Minérios Domados

A Imagem Perdida



Como essas coisas que não valem nada
e parecem guardadas sem motivo
(alguma folha seca... uma taça quebrada...)
eu só tenho um valor estimativo.

Nos olhos que me querem é que eu vivo
esta existência efêmera e encantada...
Um dia hão de extinguir-se e, então, mais nada
refletirá meu vulto vago e esquivo...

E cerraram-se os olhos das amadas,
o meu nome fugiu de seus lábios vermelhos,
nunca mais, de um amigo, o caloroso abraço...

E, no entretanto, em meio desta longa viagem,
muitas vezes, parei... e, nos espelhos,
procuro em vão minha perdida imagem!


Mario Quintana

"TUAS CARTAS"



Tuas cartas rasguei uma por uma:
Cento e quatorze páginas e tiras
De confissão e juramento: em suma,
De perfídias, de enganos, de mentiras.

E chorei, ao rasgá-las! Tinha alguma
Cousa implorando contra as minhas iras
Em todas; e, hoje, irritação nenhuma
Neste peito verás, por mais que o firas.

Eram mentiras, eu bem sei... No entanto,
Cada rompida página era um cardo
Que enterrava do peito em cada canto.

E eis porque, pelo chão, após instantes,
Os pedaços juntei... e agora os guardo
Com mais amor do que os guardava dantes!


-HUMBERTO DE CAMPOS-
In (‘Poesias Completas’ (1933))

Dia



De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.

Octavio Paz

Inutilmente



Floriram os ipês ali da praça
e, quando a gente passa,
-porque o vento as derruba em profusão –
vai esmagando flores pelo chão.

Como ciclópica oficina
pulsa, ao redor, a vida citadina.
Arranha-céus fugindo para o alto
numa arquitetura funcional;
automóveis rodando sobre o asfalto
e, de fundas angústias carregada,
a multidão correndo, alucinada,
vazia de Ideal.

Babélica, apressada,
toda essa gente não repara em nada:
não vê, em cima, a loira floração,
nem vê que pisa em flores pelo chão.

Os ipês se enfloraram, mas em vão . . .
Sua mensagem clara, colorida,
-um hino de louvor ao Belo e à Vida –
fica rolando, inútil, pelo chão,
fica, inútil, rolando pelo ar,
pois os homens não sabem mais sonhar.


Graciette Salmon
In: A Vida Por Dentro

*A foto que ilustra o poema é da "Praça da Liberdade" - Belo Horizonte-MG

sexta-feira, 6 de maio de 2011

E por vezes...


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Lábios que não se abrem, lábios


Lábios que não se abrem, lábios
com seu segredo
calado



Segredo no ermo da noite
resiste à rosa dos ventos
calado.



Flauta sem a vibração
do sopro.
Luar e espelho, frente a frente,
em calada
vigília.



Fria espada unida
ao corpo.



Resto de lágrimas sobre
lábios
calados.



Borboleta da morte
em sorvo
pousada à flor dos lábios
calados
calados.


Henriqueta Lisboa
Publicado: A Face Lívida (1945)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

MAR ALTO


Esta água é todas as águas,
sem porto, nome ou naufrágio.
Rendada de espuma ao vento,
sem dor nem contentamento.

Esta água — lugar nenhum —
é perdição sem loucura.
Nela se dissolvem mágoa,
memória, tempo, aventura.

Sem lei nem rei, sem fronteiras,
além de verbo e silêncio,
esta é a pátria procurada:
incêndio de tudo — nada.

Hélio Pellegrino

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"POEMA BREVE"


Inda percorro os dias
e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna,
In "Algures no Tempo"

MOTIVO


Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.

Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.

O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.

Glória de Sant'Anna

5



por trás da alta falésia
o mar chora-me nos pés

(último afago sereno
a quem se afasta morrendo)


Glória de Sant'Anna
in Amaranto

QUADRO




tanto oiro na tarde
escorrendo do poente

as silhuetas das árvores
são fímbrias de poemas

e quantos horizontes
me esqueceram?

Glória de Sant'Anna
in Algures no Tempo
EPITÁFIO

Eu um dia serei uma poalha de vento
pousando inadvertidamente em tua face

e me sacudirás

Eu um dia serei uma réstea de chuva
caída por acaso em tua fronte

e me sacudirás

E eu um dia serei a última lembrança
imponderável já na tua mente

e então me esquecerás


Glória de Sant'Anna

'Vibra o Passado em Tudo o que Palpita'


Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transita

À paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:

O cetro dos eleitos que não cansam
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançam

sobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo.


Walter Benjamin,
in "Sonetos"
Tradução de Vasco Graça Moura

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vicente de Carvalho (excerto)


[...]Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...

É o tempo em que adormeces
Ao sol que abrasa: a cólera espumante,
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As largas ondas marulhando estendes...
[...]


Vicente de Carvalho
Excerto do poema 'Palavras ao Mar'

Noturno


Laça-me o coração a curva de teus olhos,
Um giro de dança e doçura,
Berço noturno e firme, auréola do tempo,
E se já não sei mais o que foi minha vida
É que teus olhos não me viram no passado.

Folhas de luz, musgo de orvalho,
Ervas do vento, risos perfumados,
Asas cobrindo o mundo de clarões,
Barcos cheios do céu e do oceano,
Caçadores dos sons, manancial das cores,

Perfume que nasceu em ninho de alvoradas,
E que escondido está na palha das estrelas,
Como da inocência depende a luz
Depende o mundo de teus olhos puros
E em seu olhar corre meu sangue.


Paul Éluard

NOTURNO


No silêncio da noite vou formando
teu retrato, no silêncio da noite
modelando teus olhos, teus cabelos
entre os lençóis de sono que me envolvem.

Na meia claridade, maldesperto,
angustiado, insone, construindo
a arquitetura móvel de teus lábios
levanto-me, e estás sempre comigo.

Durante o dia e a qualquer momento
estamos lado a lado, vou compondo
a tua imagem (vento sombra nuvem),
lembrança amiga no trabalho duro.

E surges na agonia do crepúsculo
- e és a aurora inaugurando a noite.


Fernando Py
in 70 Poemas Escolhidos